segunda-feira, 25 de fevereiro de 2008

Pela Primeira Vez

A escuridão no céu revelava que o sol já tinha se posto há tempo. No chão, o luar iluminava todo o jardim e apenas poucas sombras eram formadas. Na penumbra, ao lado de uma imponente macieira, dois pálidos corpos conversavam deitados na grama.

- Então hoje temos a noite livre? - perguntou a figura masculina.
- Não, mas é só ficar de olho na casa. Não é tão ruim. - responde a garota de jovem aparência
- Ah. O Paulo sabe se virar. Ele não precisa de duas babás.
- Eu tenho minhas dúvidas. - a garota beija o homem no canto da boca e começa a se levantar – Quando voltarmos a gente continua.

O sorriso de Samara era quase hipnotizador. Ela não precisou oferecer a mão para Julio. Ele já a acompanhava na mesma velocidade, escalando a árvore e subindo de galho em galho logo atrás.

Achando um galho maior e chato, no topo da árvore, Samara verificou se havia espaço para Julio. Não era dos galhos mais confortáveis de se sentar, mas ele parecia agüentar ambos e a visão da velha casa na distância era ideal.

- Será que vai demorar muito? - a pálida pele dos dois refletia a luz da lua.
- Sei lá Julio. Você lembra como foi a sua primeira vez?
- Quê? Me testando, é? Faz muito tempo, mas eu lembro sim. Foi com você. - ele sorri com o canto da boca.
- Pelo menos isso você lembra. - uma inevitável risada escapou da boca da garota de olhos castanhos.

O silêncio perdurou por algum tempo enquanto ambos procuravam identificar qualquer movimentação na casa por dentro de suas largas janelas antigas. O luar facilitava a tarefa ao iluminar a casa e o gigantesco quintal da mesma. Entre o pálido casal e a casa ficava o que devia ter sido um luxuoso jardim em tempos passados. Atualmente, um emaranhado de plantas e capim dominava o que deveria ser terreno suficiente para um campo de equitação.

- Sabe o que não entendo? – Julio pouco se importava se queria ou não conversar. A indagação dele soava ingênua e natural, como se aquela dúvida fosse solucionar a razão da sua existência. – Como que até hoje nunca investigaram o casarão? É um ótimo lugar. Funciona e funcionou muito bem pra gente, mas é impossível um pai nunca ter suspeitado que sua filha puritana tenha vindo para um lugar desses em busca de privacidade.

- E é por isso que eu digo que você é esquecido. Meu pai veio me procurar aí.

A expressão facial de Julio era impagável. Seus olhos entreabertos xingavam Samara de mil nomes sem nunca falarem uma palavra.

- Isso foi há –
- Eu sei, muitos anos. Ainda assim, felizmente naquela época a polícia não deu muita bola pra ele. Hoje em dia isso não acontece mais porque o terreno é particular.
- Você que pensa. Hoje em dia é fácil demais, mas a gente pode estar sendo investigado e nem sabe.
- Não. É fácil e tranqüilo porque a gente não comete erros. Porque a gente não chama atenção. Por que você acha que a gente geralmente vem aqui vigiar? Sempre que um casal entra na casa, alguém tem que ficar de guarda do lado de fora. Além do mais, nunca deixamos qualquer ras –

Um grito feminino distante cortou o ar e o diálogo.

- Até agora. – Julio não perdeu a oportunidade. Seu sorriso era sarcástico.
- Paulo... – Samara comentou olhando para casa com olhos prestes a pegar fogo.
- Deixa ele. Você se irrita com facilidade. É normal errar quando se é inexperiente.
- Mas pelo grito da garota parece que ele não tem idéia do que faz.
- Calma...acontece nas melhores famílias.
- Exato e se sujar o nome da nossa eu mato ele. De novo.

A idéia de instigar a tempestade em copo d’água criada por Samara não apetecia Julio, então ele optou por ficar calado. Ainda assim, ele sabia que ela tinha alguma razão.

O silêncio retorna, dessa vez constrangedor. Todos os dois observando atentamente os arredores.

Julio toma a iniciativa e diz:

- Vamos lá ver se está tudo bem.
- Por que a preocupação repentina?

Julio aponta rapidamente para a estrada que tangencia o terreno da abandonada casa. Em razão da distância, apenas se pode ver o fraco piscar alternado de luzes vermelhas e azuis por entre o matagal do quintal.

- Eu sabia que ele ia fazer merda. – Samara resmunga.

Usando a noite como refúgio o casal rapidamente deixou a árvore. Um largo pulo e metade da distância até a casa já tinha sido coberta. Por entre as sombras a outra metade foi alvo de uma ligeira corrida. A escuridão como o perfeito disfarce.

Chegando à entrada, ambos pouparam tempo pulando e entrando por uma janela no segundo andar.

- Paulo! – a voz de Julio se propagava com facilidade por entre a madeira velha e os corredores vazios.
- Aqui. No quarto. – a distante voz respondeu.

Julio e Samara chegaram à porta do quarto e analisaram a situação. Um grande e antigo cômodo em que tudo era velho e decadente. O chão de madeira rangia e a quebrada maçaneta da janela mostrava que ela não tinha sido aberta em anos, assim retendo o cheiro de poeira e mofo.

Exceto pela cama. Uma gigantesca e conservada cama pairava no meio do quarto. A madeira da sua estrutura brilhava e os lençóis cheiravam a amaciante. No centro do colchão, iluminada pelo luar que atravessava a janela, deitava uma jovem envolta em um fino lençol roxo. O que o lençol não cobria, revelava ser um escultural corpo nu, mas de coloração estranha que parecia perder vida e ficar pálido.

Paulo terminava de vestir sua calça quando Samara exigiu respostas:

- Ela tá viva? – a autoridade era audível.
- Depende de o que você considera “viva”. – Paulo respondeu sem perder a oportunidade e o senso humor.

Enquanto Samara se aproximava do corpo, Julio continuava com as perguntas:

- Por que ela gritou?
- Não sei. Estava tudo bem. Estávamos abraçados e nos beijando e de repente o olhar dela mudou. Parou de sorrir e gritou. Eu não sabia o que fazer e mordi.
- Idiota. Ela viu seus dentes. Seu olhar pervertido também não deve ter ajudado muito. – Julio desvendou o mistério com facilidade.
- Ela está com um pulso fraco. Deve acordar em algumas horas, mas a gente precisa sair daqui. – Samara informa.
- Por quê? – Paulo indaga.
- Porque a sua gritaria chamou a atenção da polícia. Pegue os lençóis que eu vou carregar a garota. Samara lidera.

Paulo rapidamente puxa os lençóis da cama, desenrola o que ainda está preso ao corpo da garota e coloca tudo debaixo do braço. Samara abre a janela com um forte e preciso chute. Julio ajeita o corpo feminino sobre o seu ombro e observa a profunda marca de dois dentes caninos marcados no pescoço. Dois buracos quase idênticos, simétricos e eqüidistantes sem qualquer indicativo de sangue vazado ou uma área dolorida em volta.

- Apesar de tudo, Paulo, foi uma bela mordida. Nada mal para uma primeira vez. – Julio sorri com o canto da boca.
E em instantes a casa estava vazia novamente. Policiais perplexos deduziram ter sido um trote ou jovens marginais. Sem as figuras pálidas, a casa voltou a ficar vazia como parecia estar pelas últimas centenas de anos. Camuflada para a civilização.

3 comentários:

Anônimo disse...

Um conto muito bonito; gera boas sensações no leitor; utiliza uma linguagem visual; gera no leitor vários sentidos como o tato, sexual entre outros...mostra uma sensibilidade muito boa do escritor..Daria uma boa curta(filme) esse conto....

Anônimo disse...

Eii Dr. Arthur! O negócio do e-mail, de fato, funcionou...

Gostei bastante do conto, tema simples, envolve e prende a atenção de quem lê...os diálogos (considero o mais dificil de um texto) ficaram bem trabalhados...

Enfim, Parabéns!

Bárbara (não sei mexer nisso aqui direito até hj)

Lívia H. disse...

declaro aqui, agora, nesse universo virtual, que me considero incapaz de compartilhar meus rabiscos. tenho vergonha depois dos seus últimos.
tenho dito.

mas quero te ver! :)