terça-feira, 24 de julho de 2007

Negra Cicatriz

Com esse post é dado início a uma novidade no Vagrant Bard. Um conto policial, de minha autoria, em seis capítulos. Porque esperar é um saco e uma tortura desnecessária, aqui vai o conto na íntegra. Leiam e divirtam-se...

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I

Uma placa azul enferrujada, daquelas pregadas em prédios, dizia o nome da rua: Avenida Imperial. O nome confirmava que eu estava no lugar certo, mas não havia avenida alguma ou qualquer coisa de imperial. A chuva descia do céu negro e abafava os ruídos de relâmpagos ao fundo. A perfeita noite para estar em casa, e ali estava eu em uma ruela mal iluminada com um esgoto congestionado descendo com dificuldade pelo canal ao lado do meio fio. O toque de atraso era evidente. Era uma rua com prédios do início do século, divididos por uma faixa estreita de paralelepípedos. Eram amarelos ou azuis, mas independente de cor estavam todos descascando e revelando o vermelho dos tijolos em diferentes pontos. Traziam-me lembranças de Sofia.

Uns dois ou três postes iluminavam de maneira precária o que ainda sobrava da rua. Entre o intervalo dos primeiros dois postes havia uma área vermelha, iluminada pelo piscar repetido de um letreiro antigo que dizia “Fun House”. O que antes devia ser uma excelente estratégia de publicidade, agora só atraia o olhar hipnotizado de um mendigo que se abrigava debaixo de uma marquise na calçada oposta. Porque a curiosidade... Não sei. Talvez ele não entendesse inglês. Talvez por isso o olhar curioso e estúpido. Não importava.

Aproximei-me do infeliz e perguntei-lhe se tinha visto alguém entrar no estabelecimento. A minha resposta foi a hipnose do letreiro decadente. Enfiei a mão no bolso e tirei um maço de cigarros. Puxei um deles pela ponta e entreguei ao mendigo. Ainda com o olhar fixo no letreiro, ele pegou o cigarro e o colocou na boca esperando o toque final. Com a outra mão, já esperando essa reação, eu tirava um isqueiro. Era um daqueles chatos de prata, típico de filmes de aventureiros. Tinha o visto pela primeira vez em um antiquário e já ia deixá-lo de lado se não fosse pela cabeça de gárgula estampada em um dos lados. Ela sim, me fez tirar a carteira do bolso. Acendi o cigarro. O homem, estupidamente, inalou e sugou com toda a força, como se aquilo fosse perfume. Até eu que não fumava sabia as conseqüências. Enquanto ele tossia, o fedor da fumaça se espalhava, assim como as respostas. Eu vi sim – ele parou para tossir – muita gente rica e arrumada. Daquelas de terno e vestidos que arrastavam no chão. Nada disso soava bem. Joguei outra migalha de nicotina ao porco e atravessei a ruela.

De baixo da marquise da casa de diversões um gigante engravatado me esperava. Não havia fila, o que era de se esperar. Já era tarde e o lugar parecia ser dos piores possíveis: um cabaré barato, sujo de pouco movimento e do pior público. Das duas uma: caminhavam em direção à falência ou lavavam dinheiro. Paletó. O provável ex-lutador de luta-livre se fez entender. Como não queria causar confusão ou sair com a cara amassada tirei o paletó molhado e o entreguei. O paletó foi revistado de maneira cuidadosa, sendo avaliado cada bolso. No último bolso foi encontrado um resto de rosa. Sem caule e amassada, mas ainda assim: uma rosa... Ou o que restava do presente de Laura. Cuidadosamente o segurança a colocou de volta no bolso e me devolveu o paletó. Pode entrar. Vire a direita. O Chefe lhe espera.


II

Entrei na casa dos prazeres e para o meu espanto, lá dentro as coisas eram bem diferentes. Fui engolido por um grande salão escuro que se apresentava com um placo no meio. Uma mulher dançava em cima enquanto fazia seu ato erótico da noite, em meio à luz negra, para os homens de meia idade com olhos arregalados.

Fiquei desnorteado. A música era a alta e o ambiente hipnotizador. Caminhei em direção ao palco para tentar descobrir onde que o tal chefe poderia estar me esperando. “Senhor... a cozinha é para o outro lado.” Foi o que uma voz disse acompanhada de uma mão que tocava o meu ombro.

Cozinha? Porque diabos eu ia querer ir para a cozinha. Suspeitei, mas ainda assim dei meia volta e identifiquei no lado oposto do salão um outro ambiente separado por uma parede de vidro. Paredes e teto acolchoados pelo mesmo couro vinho que amaciava os bancos. Uma iluminação uniforme agradável que não atrapalhava nem a garçonete que servia as bebidas ou os grupos reunidos nas mesas que podiam ver claramente suas refeições.

Empurrei a porta de vidro e notei que o som também era agradável. Ao contrário do salão negro, uma melodia mais calma tocava a fim de acalmar todos lá dentro. À minha esquerda um mosaico de garrafas era exibido atrás do balcão do bar. Não queria aparentar perdido como anteriormente, mas vasculhei as estantes alcoólicas e me deparei com a garçonete que buscava o contato visual. Ela apontou discretamente para uma porta dupla na outra ponta do salão. Janelas redondas denotavam um ar de cozinha. Minha suspeição apenas aumentava, mas correr não era uma opção. Segui calmamente e empurrei as portas, entrando no que seriam os bastidores do restaurante.

Encontrei-me dentro de um típico estabelecimento de luxo. Fogões industriais de última geração e uma bancada prata que apenas esperava pessoas para cortar e preparar os mais variados alimentos. Rapidamente um homem se aproximou de mim. Ele vestia branco e um chapéu peculiar, a típica farda de um cozinheiro.

- Prazer senhor. Eu sou o chef.

Não tive ânimo para rir.

- Me acompanhe, por favor. – disse ele diante da minha ausência de resposta.

Andamos o suficiente para eu mudar de idéia quanto ao tamanho típico da cozinha até que chegamos às escadas. Descemos dois andares até que o cozinheiro pediu que eu parasse.

Diante de nós estava mais uma porta dupla de cor prata. À esquerda dela, em cima de uma pequena bancada, uma caixa de papelão fechada.

- Vejamos... o que temos aqui... – o chefe falava enquanto abria a caixa. – Ah! Essa vai cair bem em você. – Ele retirou da caixa uma face vermelha e tribal. Parecia um demônio inca.

Peguei a máscara e experimentei no rosto. Gostei.

- Vejo que temos gostos parecidos. – o cozinheiro me bajulou como um fiel mordomo faria. – Agora, apenas gostaria de lembrá-lo que não é permitido tirar a máscara durante a festa. A menos que você esteja no banheiro individual e seja necessário. Havendo qualquer problema, procure um dos seguranças, eles estarão vestindo máscaras variadas, mas haverá sempre um girassol nos seus bolsos da frente.

Agradeci com um gesto singelo e empurrei as portas. Junto com a música e sua batida pesada veio um cheiro de carne crua. Senti-me como um predador que havia acabado de encontrar sua presa. Os fatos coincidiam e aquele era o frigorífico.

Um tapete vermelho ditava o caminho para a festa em meio ao azulejo mal iluminado. No entanto eu sabia que eventualmente teria de abandonar o vermelho do carpete para seguir o vermelho do sangue. Laura estava por aqui e seria apenas uma questão de tempo até achá-la.


III

Há coisas na vida para as quais nunca somos preparados. O frigorífico era uma delas. Em todos os meus anos de jornalista, anos de loucas festas da mais alta sociedade e “choppadas” de faculdades, eu só havia visto isso em filmes. Talvez eu não tivesse visitado os lugares “certos”. Talvez eu não tivesse um olhar tão atento assim.

Cada passo naquele carpete macio acompanhava a batida pesada eletrônica. Todo o corredor tremia ao som da música. A melodia sintetizada e os instrumentos nada naturais me agradavam e eram um alívio naquele ambiente. Techno Industrial é o que muitos falariam, mas aquela música fazia parte de um ambiente que incluía muito mais. Um ar pesado me englobava e o rastro de fumaça me indicava a origem. Um grande salão se apresentava para mim com um balcão improvisado à esquerda. A tábua, onde muitos animais provavelmente eram mortos diariamente,servia como apoio para uma exibição de drinques. Nenhum deles tinha o típico guarda-chuva decorativo, mas as cores das bebidas já eram tão fosforescentes que dispensavam qualquer adorno.

Os garçons, de terno vermelho e cabeça de demônio laranja, saiam em suas rotas pré-estabelecidas distribuindo o que pareciam ser os derivados de absinto junto com um peculiar charuto. Senti o isqueiro dentro do meu bolso, minha mão tremeu. Não era a primeira vez que eu tinha sentido a vontade de fumar. O próprio isqueiro era prova disso. Comprei-o pela face de gárgula, mas passei a carregá-lo comigo por causa da maconha. No entanto, uma viagem mal sucedida foi o suficiente para me convencer de que o isqueiro serviria apenas como uma espécie de chaveiro. Um inútil adorno do qual gostamos. As lembranças dos tempos de faculdade, embora distantes, eram o suficiente para confirmar que o cheiro do salão não era da típica erva. Quanto aos convidados, eles dançavam e riam como crianças. Crianças torpes. Não devia ser cannabis sativa, era diferente, era bom demais.

Virei à direita em uma porta estreita. Mal havia luz do outro lado, levando a entender que devia ser uma área restrita. Uma estreita escada de metal me aguardava a frente. Ao topo do primeiro intervalo de degraus encontrei um casal nu, exceto pelas máscaras, usando o chão como se fosse uma luxuosíssima cama de motel. A luxúria de uma forma geral é incontrolável, mas o azulejo gélido geralmente seria evitado por casais, mesmo com instintos sexuais aflorados. Se não fosse pelo uso óbvio de uma droga, era possível dizer que o casal estava tentando inovar uma posição sexual. Contudo, os olhos tremidos e ligeiramente tortos davam a entender que eles não tinham exata consciência do que estavam fazendo. Uma noite dessas provavelmente seria o sonho de qualquer adolescente tarado. Talvez até hoje fosse o meu.

Passei por cima do sexo dos demônios e atentei para a questão principal. Laura devia estar presa em algum lugar no segundo andar, já que este parecia ser de acesso restrito. Nunca achei que fosse me encontrar nessa situação. Procurando uma amiga minha em uma festa underground. Não é todo dia que se recebe uma ligação desesperada aos prantos de uma pessoa que mal consegue balbuciar a palavra “ajuda”. Consegui o endereço da tal Fun House e assim que vim parar aqui. Guiado pela música e uma mistura de sentimentos. Sempre tivemos uma relação de amizade saudável. Hora colorida, hora não. Assim como uma luva encaixa nas mãos, encaixou a rosa que Laura me deu de bobeira (sic) pelo dia dos namorados. Esqueci o presente no bolso como o bom cavalheiro que sou e consegui acesso à festa. Já para com Laura era o oposto. Depois da ligação eu tive certeza de que a cena estaria tatuada na minha mente. Só havia uma forma de tratar isso, salvando-a.

Entrei em uma sala mal iluminada com um labirinto formado por enormes pedaços de carne pendurados por ganchos no teto. Por sempre evitar academias nunca tive um físico hercúleo. Pelo mesmo motivo não pude me defender quando senti o minotauro me golpear na nuca.


IV

Quando consegui levantar minhas pálpebras ainda estava sem qualquer noção de localização. Tive a impressão de estar pendurado pelos meus braços e foi ao retomar os meus sentidos que percebi que estava preso. Minhas mãos começaram a doer à medida que fui sentido o metal gelado em volta delas. Deviam ser algemas que me faziam abraçar o poste atrás de mim. Ainda com a cabeça pendurada, olhando para baixo, fitei minhas pernas. Elas me sustentavam em sentido vertical, mas também estavam presas por algemas. Fiz força e lentamente consegui erguer a cabeça. Meu pescoço parecia estar levantando uma bigorna. Gemi levemente com a dor.

- Vejo que o nosso convidado de honra acordou.

Uma voz calma e ligeiramente aguda se manifestou. Meus olhos lentamente traçaram o caminho até a sua origem. Um senhor idoso, meio baixo, com uma bengala na mão sorria para mim. Ele lentamente se aproximou. Cada passo equivalente a um estalo da bengala com o chão. Ele parou a uns dois palmos da minha face e me encarou.

- Quer dizer que você é o namoradinho da ladra?

Quê? Ladra? Do que diabos ele estaria falando? Era da Laura?

- Você não sabe do que estou falando? - O velho ajeitou a sua juba grisalha com um leve movimento da mão que não segurava a bengala. – Olha, eu não gosto de jovens que mentem. Sou uma pessoa muito gentil e amável. Eu cuido bem dos meus netos. Eles gritam “vô” e pedem algo e sempre que possível eu dou. Não quero mimá-los, mas eles sabem que tudo tem um preço. Quando é hora de dormir, não há discussão. Ninguém quer relembrar o que aconteceu com o Lucas. Hoje em dia eles vão para a cama sem pestanejar. Por isso eu queria aplicar esse mesmo ensinamento a esse nosso encontro.

O pequeno senhor estalou os dedos e saiu da minha frente. No lugar dele surgiu um homem de grande porte vestindo um terno e segurando uma bola de futebol.

- Esse é o Sílvio. Ele jogava futebol profissionalmente antes de vir trabalhar para mim. – Sílvio posicionou a bola na sua frente. – Agora preste atenção filho. A minha oferta é bem simples: fale a verdade ou você pagará o preço. Assim como os meus netos pagam, a única diferença é a escala de dor. Preparado? Quanto vocês tiraram de mim?

Naquele momento eu entendi que Laura devia ter mexido com a pessoa errada. Ela nunca me falou nada e eu não tive tempo para pensar porque. A bola atingiu meu estômago antes. O ar rapidamente fugiu. Senti-me como se tivessem colocado um saco plástico na minha cabeça e dado um soco na minha barriga.

- Patético. Você parece meu neto Gilberto quando tem crise de asma. Se coloque de pé ou vai tomar outra bolada nessa posição mesmo.

- Não sei. Eu não sei de nada. – Foram as palavras que consegui balbuciar.

- Tudo bem. Vamos fazer o seguinte... – Consegui vê-lo puxando um celular do bolso do paletó – Amorzinho. Vou tentar ligar para esse tal de “amorzinho”.

Ele apertou um botão e o silêncio permeou a sala. Até mesmo a minha respiração ofegante travou. Até que o meu paletó começou a vibrar e o suor a escorrer pela minha testa. Por que a Laura salvaria meu número como “Amorzinho”? Eu nunca tinha visto isso no celular dela.

- É. Acho que você deu sorte filho. Cometemos um engano. – concluiu o velho. Ele não tinha ouvido o celular vibrando, mas na terceira vez o toque foi ativado. A pequena melodia eletrônica me lembrou uma marcha fúnebre. Tremi, quase entrando em colapso mental. Sílvio se aproximou e pegou o celular do bolso do meu paletó, agora tocando cada vez mais alto.

- Péssima escolha filho. Você mentiu para mim. Você me desrespeitou. Agora vai pagar o preço. – vociferou o chefe grisalho enquanto ele me encarava e estalava os dedos.


V

Um alto barulho crescente de metal podia ser ouvido. Sílvio abriu a porta e com a luminosidade pude identificar minha localização. Era mais um dos salões de carne do frigorífico, mas vazio. Eu estava preso a um tubo de metal que fazia parte do encanamento exposto. Um carrinho de mão, daqueles para caixotes, foi trazido e nele estava estendida Laura. O seu corpo nu amarrado ao longo da extensão vertical que acompanhava a coluna. Apenas o rosto espancado e os pés ralados podiam ser vistos enquanto todo o resto estava coberto por uma quantidade excessiva de cordas.

Ergui-me e fiquei de pé sem pensar. A dor não importou. Nossos olhares se encontraram. Enquanto os meus olhos indagavam o porquê de tudo aquilo, os dela se despediam com um singelo pedido de desculpas. As lágrimas dela interromperam o recado e estas foram interrompidas pela voz diabólica.

- Escolha uma mão. Direita ou esquerda? – disse o velho para mim enquanto ele pegava uma grande faca de açougue. – Vamos... dê a mão. Você roubou, agora vamos cortá-la. – Sílvio estava tirando minhas algemas quando foi interrompido pela voz de Laura.

- Parem! – com todos os olhares voltados para ela, continuou. – Fui eu. Eu que roubei. – lágrimas se misturavam com suas falas – Ele não sabia de nada.

Sílvio recolocou as minhas algemas e o velho se aproximou de Laura, usando a sua bengala de metal para afiar a faca.

- Temos uma heroína aqui agora. Cá estava eu achando que a minha secretária, digo ex-secretária, tinha sido manipulada pelo seu namorado. Mas não. Laura... Laura... que decepção... Eu lhe dei acesso às minhas contas e você se aproveitou da minha bondade. Você devia ter pedido demissão quando lhe dei a chance. Uma garota jovem, bonita e muito gostosa. Eu fiz o impossível e te dei uma chance. Mas agora você sabe... Ninguém sai do escritório vivo. Ninguém.

- Aquilo era dinheiro sujo! Você consegue fortunas tirando de outras pessoas. – A resposta de Laura foi uma pesada palma de uma mão na sua face.

Em seguida, ela foi desamarrada e jogada no chão. Seu corpo estava completamente marcado por cortes e manchas roxas. Sílvio e mais outro gigante de terno seguraram-na enquanto o diabo grisalho esticava o braço esquerdo. Ele sorriu para mim e levantou o facão. Laura relutava da forma que podia e respirava desesperadamente. Os gritos dela ecoaram na sala. Quando eu vi sua mão sem dedos, os meus gritos ecoaram também.

Acho que ninguém gostou da cena, nem mesmo o velho, mas ele fazia pose de quem se divertia. As falas dele começaram a ficar incompreensíveis e a minha visão escura. O branco corpo de Laura, antes escultural, agora estava em uma posição contorcida. O branco profanado, agora manchado de sangue. Meus olhos involuntariamente passaram a recusar aquelas imagens e minha visão começou a escurecer.

- Fala vadia! Cadê o meu dinheiro? Onde você colocou? Fala a conta! – gritava o chefe enquanto meu corpo deslizava. Em meio ao colapso escutei falas avulsas.

- Senhor! Ele tá apagando. – uma voz grossa se manifestou, devia ser Sílvio.

- Eu quero que ele veja isso! Bota ele pra acordar! – retrucou o velho em meio aos gritos de Laura.

Senti em algum momento uma picada no meu braço esquerdo.

Uma luz verde fez com que meus olhos abrissem. O velho e os dois gigantes estavam de pé no centro do salão. Um corvo negro voava perto do teto e deu voltas em espiral até pousar ao lado do chefe grisalho. Os quatro formavam um circulo em volta do que restava de Laura. Sua face se despedia de mim com uma lágrima congelada na bochecha. O facão de açougue deitava ao lado dos pedaços do corpo e a poça de sangue se expandia cada vez mais contaminando o que restava de alvo.


VI

* * *

- Acabou? Isso é tudo que você lembra? – me perguntou o investigador.

- É. Como te disse, perdi a consciência durante o. ato. – Ainda não era fácil para eu falar sobre aquele assunto – Por que as perguntas? Já não prenderam o assassino?

- Prenderam? Trucidaram ele. A gente sabe que o Senhor Imilel foi o responsável pela morte de Laura, mas até hoje não descobrimos quem foi responsável pela morte dele e os seus dois seguranças.

- O que importa é que ele morreu. – disse sem hesitar.

- Eu te entendo, mas precisamos descobrir isso. Pode existir algum assassino de aluguel a solta que se aproveitou da situação. Não se recorda de mais nada?

- Olha. O psiquiatra me disse que eu tenho um bloqueio de mente. Na minha opinião eu apaguei. Apaguei de nervosismo. Não desejo o que eu vi para ninguém, mas fico feliz pela morte deles. Me disseram que eu fui encontrado no chão espancado e com as algemas quebradas.

- Ao lado de três corpos trucidados. – rapidamente retrucou o investigador, como uma criança fazendo um comentário esperto em sala de aula. Ele me irritou.

- E o que você quer dizer com isso? Que fui eu? Eu matei os três?

- Não! Eu só estou tentando entender o que houve naquela noite. Eles te espancaram depois de matá-la e cortaram as algemas quando viram que estavam atrapalhando. Só pode ser isso...

- Não me importa. Eu nem sei se estar vivo é uma coisa boa e você acha que eu vou me preocupar com como eles morreram? – Eu não agüentava mais. Tive vontade de matar aquele policial com suas perguntas inconseqüentes. Um corvo desceu do teto e pousou no seu ombro. Isso me levou a outra pergunta. – Tinha algum corvo lá?

- Quê? Não, não tinha... - o investigador engoliu seco - Você tá perguntando por causa da sua visão? Aquilo foi uma alucinação da adrenalina que injetaram em você. - Agora ele se dava o luxo de recusar a informação que eu tinha lhe dado. Me cansei.

- Essa conversa não tem para onde ir. Eu vim aqui buscar os pertences da Laura. – Tinham me ligado da delegacia justamente me perguntando se eu queria buscar os objetos dela que não tinham destino. A família não era encontrada em lugar nenhum e eu era o único vínculo evidente. Obviamente ninguém do trabalho se manifestou, estava tudo um caos.

O inspetor me entregou uma caixa de papelão com várias coisas. Algumas roupas, objetos aleatórios de escritório, um ursinho de pelúcia. Um porta-retrato com uma foto dela. A saudade me impulsionou. Abri o porta-retrato e peguei a foto. Dobrei-a, guardei no bolso do casaco e sai.

Chegando em casa tirei a foto do bolso. A face de Laura permanecia alva como sempre, mas o verso da foto não. Achei uma longa seqüência de números e um nome científico marcados pela letra dela. Não foi difícil ligar os fatos. Dias depois já tinha achado o dinheiro e descoberto o que tinham injetado em mim.

A manchete “Farmacêutica Imilel envolvida em produção de drogas ilícitas” foi a minha contribuição para o fim do legado daquele velho torpe. A matéria foi lida por todos e a empresa não agüentou a pressão. Em poucos meses faliu de maneira épica.

Já a substância que foi injetada em mim era para ser o protótipo da nova sensação. Dizia-se que era para ser melhor que o ecstasy. Não foi o meu caso.

Nada me fará esquecer aquela noite. Laura. Imilel. Ou o corvo. Se há coisas na vida das quais nunca conseguiremos nos lembrar, essa é uma das que não há como esquecer. A injeção aplicada de maneira errada no meu braço marca, desde então, uma negra cicatriz que começa na minha veia e termina no meu coração.